A partir do século XVIII, a Ilha de Santa Catarina e o litoral catarinense exerceram papel protagonista na história da conquista do Prata. Com o declínio das navegações, este papel se desfez, levando a um gradativo processo de isolamento com as demais regiões do Brasil e até mesmo com o contexto estadual. Uma das conseqüências deste isolamento foi um modelo econômico com baixa industrialização, em especial da capital, o que a torna um caso bastante peculiar entre as capitais brasileiras, especialmente se considerarmos as regiões Sul e Sudeste.
Somente com a construção da BR-101 na década de 70, tem-se o início efetivo de rompimento do isolamento da capital para as demais regiões do estado, e do litoral, com os estados vizinhos. Abrem-se as portas para as atividades econômicas em torno do setor de serviços, com destaque para a forte expansão turística.
Sobre um cenário natural magnífico e lugares de contornos urbanos outrora despretensiosos, deu-se início a intensa ocupação. A expansão imobiliária sobrepôs estruturas naturais existentes e ocupações pretéritas, sem a atenção necessária dos impactos produzidos por tal empreendimento.
Assim, o litoral catarinense, de um nó marítimo, inaugurado pelos europeus no Atlântico Sul como ponta de lança para as riquezas do Prata e do Pacífico, descobriu-se como o novo tesouro: um contínuo de lugares turísticos, mantenedores de riqueza natural ímpar, que atrai novos conquistadores.
Neste litoral, aportamos, ocupamos, exploramos a agricultura, parcelamos propriedades, criamos caminhos, estradas, loteamos, rasgamos avenidas, vias expressas, ruas, casas, prédios, resorts, condomínios e shoppings. Montamos junto à orla um intricado acúmulo de formas construídas, que não fazem juz à cena natural. Esta alteração da paisagem e conformação dos lugares é um processo que não está finalizado. Aqui e ali é mais tímido, seja por reserva imobiliária, pela falta de acessibilidade ou por força preservacionista. Lá e acolá está no auge, com seus metros quadrados a custos restritivos. O mosaico do litoral sustenta assim a vida cotidiana e a recente descoberta do ócio.
O fato é que cada vez mais se discute os destinos urbanos e ambientais do conjunto de cidades que se enredam sobre o litoral. Apesar disto, as ações de planejamento têm passado ao largo de algumas questões fundamentais. Entre outras, verificamos que a questão ambiental na última década gradativamente entra na agenda do planejamento, assumindo importante papel. Isto acontece sem uma clara reflexão sobre as interfaces entre sítio, estrutura urbana e edificação. Planejadores e arquitetos têm se detido nas respostas ambientais do projeto na escala do edifício, enquanto na escala urbana não percebemos resultados tão práticos, sendo um campo de pesquisa com urgência de se desenvolver. O atual status de compreensão da dinâmica ambiental-urbana não correlaciona a solução da arquitetura (espacial, tecnológica, entre outros) nas suas diversas escalas com o ambiente que esta se insere. Comumente, condenam-se determinados modelos de ocupação em detrimento de outros, sem uma avaliação real de seus desempenhos. Exemplifica o tradicional embate entre a cidade compacta e a cidade espalhada no território.
Na escala do planejamento da cidade, ou do desenho urbano, as restrições parecem figurar como únicos mecanismos de condução da forma urbana. As leis de zoneamento, embora atentem para as recomendações legais nas mais diferentes esferas (municipal, estadual e federal), não integram uma efetiva compreensão das dinâmicas existentes entre ambiente natural e o ambiente construído. A legislação e a apologia das restrições não criaram mecanismos que subsidiem alternativas espaciais coerentes nas diversas escalas. No litoral catarinense, a ocupação humana tem imposto sobre o sítio físico natural um contínuo desmonte dos seus sistemas, e estes mecanismos parecem não serem capazes de limitá-lo. O “não pode” dos planos diretores condicionam ações de macro-zoneamentos, políticas, diretrizes econômicas e sociais, onde a ação propositiva espacial acaba por ser relegada a pequenas intervenções ou generalidades discursivas.
Assistiremos ao declínio do desenho global e local da cidade, enquanto zoneamento, distribuição de índices e regulações edilícias, embora necessárias, figurarem como as únicas estratégias de planejamento. Assim promoveremos, de forma sorrateira, sucessivos pequenos impactos ambientais, que caminham por desfigurar o soberbo patrimônio paisagístico e ambiental existente em todo o litoral.
Interessante observar que, em qualquer audiência pública de Planos Diretores, quase sempre a construção da cidade é colocada como antítese da preservação ambiental. Tais manifestações demonstram que não temos ainda clareza de como lidar com tema tão complexo e controverso, nos levando a refletir sobre os métodos de planejamento adotados até o presente. Não existe uma análise mais precisa das diversas variáveis que interagem para a compreensão do fenômeno urbano e o real impacto de diferentes modelos de ocupação sobre o território.
Quando planos diretores afastam-se de riscar ou propor soluções espaciais factíveis e as propostas não explicitam os seus conceitos e critérios formais, fica evidente o abandono da disciplina arquitetônica e da reflexão espacial no processo de planejamento.
Embora o resultado da aplicação das regulações determine as estruturas formais da cidade, via de regra, uma reflexão propositiva sobre a configuração espacial da cidade não comparece, em especial, na organização do espaço público em seus diferentes tipos e escalas. A falta de ciência dos métodos, da atenção aos ecossistemas e às preexistências, da participação comunitária qualitativa, e do desprezo da coisa pública têm conduzido projetos e planos diretores à gaveta e ao fracasso.
Nesta toada, os projetos do conjunto de municípios continuarão a reduzir-se a pequenas praças ou intervenções locais, que por mais que se esforcem em articular o entorno urbano, não contribuem muito no desenho global da cidade, quiçá do conjunto litorâneo. As raras propostas de grande escala serão sempre figuras complementares da estrutura rodoviarista pré-implantada, como viadutos, vias expressas e elevados, que em sua maioria são propostas de engenharia.
Seriam os condomínios a única alternativa urbana viável, eliminado a possibilidade de agregar novos espaços públicos à parca estrutura existente. Ou ainda, a implantação de loteamentos que isolam suas fronteiras através de malhas desarticuladas do entorno, desarticulados do desenho do bairro e da cidade. As leis e o descompromisso de muitos empreendedores não incentivam outras alternativas.
Esta postura tem retirado das mãos da municipalidade a gestão sobre a configuração dos lugares e da cidade, não possibilitando antever, reservar ou propor as estruturas públicas mínimas para a sustentação dos processos de urbanização.
“(...) a qualidade de um traçado se baseia sobre a pertinência funcional, monumental (hierarquias) e dimensionais (largura, comprimento e malha). Não sabemos ainda qual poderia ser a pertinência de um traçado destinado a uma cidade contemporânea, mas com certeza ela deverá inserir-se em uma convenção urbana duradoura”. (HUET, 1986. p. 86).
De fato, a estrutura pública é a componente mais perene, decretando como a cidade vai atravessar os tempos que seguirão. Porém, não bastaria propor o traçado e garantir esta estrutura pública, se não tivermos ciência da cidade que resultará deste traçado. Importa compreender qual é o resultado das estruturas urbanas públicas e o seu desempenho frente a diferentes variáveis e, fundamentalmente, os impactos sobre o meio ambiente e a vida do homem.
Assim como as areias e as plantas, os homens movimentam-se agregando-se através das migrações, remotas e recentes, à paisagem, contribuindo também na construção e descoberta do ideário conceitual orientador do Projeto Vita et Otium voltado ao aprofundamento das questões que envolvem a vida litorânea permanente, sua decantada vocação ao ócio e a qualificação da paisagem cultural marinheira catarinense.
1.2 O PAPEL DO ARQUITETO
É da formação e da competência do arquiteto projetar. Este é o papel que se espera deste profissional no planejamento urbano multidisciplinar. Projetar significa propor soluções essencialmente formais, que carregam consigo desempenhos variados, como resposta a diferentes expectativas ou demandas. Ter ciência dos significados das nossas propostas, das nossas soluções e de como isto afeta a sociedade nas suas mais diversas expectativas (econômicas, culturais, sociais, estéticas, ambientais, entre outras) deve ser a busca prioritária. Ao que parece, em um sentido contrário à lógica, os arquitetos têm abandonado este universo da sua competência.
“A área profissional da Arquitetura e do Urbanismo tem, na maioria das vezes, se limitado a procurar conhecimentos que guiem suas ações em outras disciplinas, abandonando seu método próprio e mesmo a reflexão sobre sua forma de atuação. Acreditamos que a contribuição do profissional arquiteto na formação de um corpo de conhecimento interdisciplinar sobre o meio urbano pressupõe tanto o diálogo com outros campos de conhecimento quanto a reflexão a partir de suas práticas e métodos. Somente desse modo o conhecimento pode efetivar-se como guia da atividade prática, e a prática realizar seu papel de verificação do conhecimento em todas as suas etapas de evolução.” (REIS, 2008, p. 5).
Pensar sobre espaço construído, no âmbito de atuação dos arquitetos, passa por uma reflexão espacial da configuração da cidade. Embora os agentes possam ser econômicos, políticos ou sociais, os impactos sobre o meio ambiente são físicos, formais e espaciais. Não existe modo de pensar a preservação do meio ambiente sem pensar nas estratégias espaciais para a cidade em suas diversas escalas. As críticas e o chamamento para a gestão espacial da cidade deve se estender ao universo de todos os arquitetos. Incluem-se aí os profissionais de planejamento municipal, os ditos “do mercado”, os “do mercado institucional”, e também os doutos em disciplinas alheias que trocam desenhos propositivos por grafos sócio-econômicos.
Embora sejam os arquitetos agentes essenciais do processo, profissionais que num universo multidisciplinar seriam capazes de oferecer às cidades, alternativas de desenho negociadas, podendo fazer frente às diferentes expectativas sociais, sabemos dos limites de nossas ações e rejeitamos qualquer visão romantizada neste sentido.
Está nas mãos dos arquitetos parte da resposta para a falta da proposição da estrutura espacial do território e da cidade, em especial daquela de caráter público, buscando a reversão do processo de falência da forma urbana enquanto mantenedora de atributos fundamentais da cidade, especialmente no que tange à forma e apropriação social dos lugares.
A questão ambiental é primordial, mas a necessidade do presente parece estar sobretudo, em uma conciliação da preservação ambiental com a gestão e planejamento do espaço construído.
Embora não seja possível definir com total clareza qual será o modelo de crescimento das diferentes cidades do litoral para as décadas que se seguirão, há sem dúvida a necessidade de reflexão acerca do meio ambiente e das estruturas públicas que sustentarão este crescimento. Daí a importância de ensaiar situações e riscar soluções factíveis para seus diversos lugares. Acreditamos que, se recuperarmos ou valorizarmos a proposição espacial, integrados a questão ambiental um futuro mais promissor para o litoral catarinense parece surgir no seu magnífico e anelado horizonte.
Nesse sentido persite o desafio aos arquitetos representado pela agenda contemporânea de questões prementes relativas à organização do território bem como a forma urbana da cidade litorânea:
· ocupação histórica e formas de apropriação da terra determinando as diversas malhas urbanas;
· cidade horizontal de baixa densidade dominante baseada na quadricula e servidões;
· conurbação litorânea catarinense consolidada como importante e indecifrável centralidade quanto ao seu crescimento;
· identidades e singularidades urbanas;
· requalificação das malhas urbanas existentes;
· compactação das soluções urbanas;
· aprofundamento do estudo das densidades urbanas;
· densidades versus concentração e dispersão urbana;
· verticalização versus mimetização na paisagem;
· valorização dos espaços públicos;
· evolução das infraestruturas urbanas básicas;
· aprofundamento do zoneamento litorâneo do GERCO e Projeto Orla.
· preservação dos santuários como bem público e grátis da paisagem natural;
· o artefato antrópico cidade como parte dos ecossistemas;
· o modelado da paisagem natural litorânea valorizado pela criação de uma rede de belvederes como estações ambientais ao longo da BR101;
· em paralelo ao desenho da terra (bioma Mata Atlântica), desenhar o mar (bioma Marinho), resgatando as rotas náutica perdidas.
· mobilidade, como segurança de acessibilidade, reforçando as redes modais litorâneas rodoviárias, aéreas e náuticas (marítima, fluvial e lacustre), ciclovias, calçadas e trilhas de pedestres.
2.SÍNTESE CONCEITUAL ORIENTADORA DAS LEITURAS PROPOSITIVAS
NAS ESCALAS LITORÂNEAS GLOBAL E LOCAL.
Considerando as tendências de futuro do litoral catarinense em todas as escalas :
· Em primeira escala, dominantemente atlântica, a construção de latente centralidade nova, como parte integrante da mancha urbana mais densa, junto ao Atlântico Sul, a unir, desde o centro do país, imensa teia de cidades, até o extremo sul, junto ao Prata;
· Em segunda escala, quase continental, articulado à imensa rótula viária, em torno ao Prata, enfrentando os desafios da globalização, provocados pelo Mercosul, a usufruindo seu destino preferencial ao ócio de verão, e sonhando corredores biooceânicos em direção ao Pacífico;
· Em terceira escala, regional sul brasileira, integrado aos territórios do Paraná e Rio Grande do Sul, estendendo a influência de suas manchas urbanas industriais, como importantes vetores, indutores da ocupação litorânea catarinense, transformando Porto Alegre e Curitiba em seus principais portões turísticos.
· Em quarta escala, estadual referente à cidade litorânea catarinense e às suas arquiteturas, demandando providencias sobre o planejamento do desenvolvimento, da organização do território litorâneo e do desenho qualificado de seus lugares.
· Em quinta escala, intermunicipal e local, representada pelos diferenciados segmentos litorâneos, muitos deles abrangendo de modo conurbado vários municípios ao longo da BR101 e da beira-mar e entrelaçados ao interior imediato por sucessivos anéis viários.
o projeto pretende abordar as escalas litorâneas, global e local , delimitadas pelo mar e serras, tendo a BR101 como artéria vertebradora, como redução de todas as demais.
Como explicitado, são três os conceitos básicos norteadores do Projeto Vita et Otium:
1. unidades de paisagem;
2. conectividade;
3. ecogênese
sua interação, para além da síntese conceitual, propiciará a síntese propositiva, para a escalas global e local, objetivada pelo projeto.
A Governança e Financiamentos serão os facilitadores da implantação das diretrizes propostas pelo Projeto Vita et Otium.
Texto desenvolvido pelos autores do Projeto Vita et Otium, arquitetos Nelson Saraiva da Silva e Michel de Andrado Mittmann.